quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A classe média está a chegar à sopa dos pobres

Ficaram sem ter como pôr comida na mesa e começam agora a engrossar as filas nas instituições que prestam ajuda assistencial. Muitos dos 280 mil portugueses que dependem dos cabazes do Banco Alimentar contra a Fome são da classe média. Tinham emprego, férias, acesso à net e tv por cabo, cartão de crédito. Ficaram com uma casa para pagar ao banco, um subsídio de desemprego que tarda a chegar - quando chega - ou que já acabou. Um carro que já não sai da garagem.









Chegam à Assistência Médica Internacional (AMI), à Caritas ou às Misericórdias e pedem comida, ajuda para pagar os livros dos filhos, a mensalidade da casa, a conta da farmácia. Pedem, sobretudo, que não lhes divulguem o nome, porque nunca se imaginaram na posição de quem faz o gesto de estender a mão a pedir ajuda. "São pessoas que [nas cantinas comunitárias] comem viradas para a parede, têm vergonha de ser vistas ali, se lhes perguntamos o nome, fogem...", ilustra Manuel Lemos, o presidente da União das Misericórdias Portuguesas (UMP), em cujos refeitórios comunitários (que substituíram as velhíssimas sopas dos pobres) "a procura aumentou entre 200 a 250 por cento".


Ainda nos refeitórios das misericórdias, as médias etárias baixaram "dos 65 ou mais para os 42 anos ou menos", calcula Manuel Lemos. E que quem ali vai já não são só os sem-abrigo, os velhos e os inempregáveis do costume. Prova-o a forma como se vestem. "São pessoas arranjadas e cuidadas, nota-se que já tiveram a vida mais equilibrada. Ficaram desempregadas, ou aconteceu-lhes outro qualquer desarranjo, mas naturalmente não deitaram a roupa fora...", conjectura o padre Rubens, da Igreja do Marquês, no centro do Porto, onde noite sim, noite sim, comem cerca de 200 pessoas, num serviço que foi concebido no ano passado para 40.

Na maioria das vezes, os pedidos chegam por email. "Desde o ano passado que nos chegam pedidos de professores, advogados, engenheiros: profissões que nada fazia prever que precisariam de ajuda institucional", diz Daniela Guimarães, educadora social na Cáritas do Porto. Por causa destes novos utentes, a Cáritas ampliou a sua oferta, que era alimentar e de vestuário. "Este ano criámos apoio medicamentoso, e, entre Janeiro e Outubro, investimos 5063 euros em medicação. Os apoios pontuais para pagar a água, a luz ou renda também não existiam, mas as pessoas começaram a chegar aqui já com a luz cortada ou com as casas em situação de execução fiscal e tivemos que começar a intervir aí também."


Na distribuição de roupa também houve alterações. "As terças-feiras à tarde continuaram a ser maioritariamente para os sem-abrigo e depois abrimos mais um dia para as outras pessoas que sempre viveram bem e que de repente...". E que repente ficam com os bolsos vazios a sugerir a necessidade de um emprego. Pessoas que, mesmo com emprego, de repente baixam a cabeça para contar que o dinheiro já não chega sequer para o café diário. "Há dias uma funcionária pública contava-me que, perante as colegas, disse que o médico a proibira de tomar café, porque tinha vergonha de assumir que não tinha dinheiro para as acompanhar."

Na maior parte das vezes, os pedidos chegam quando a retaguarda familiar já se desmoronou. E depois há "os recibos verdes, que não se encaixam nas "gavetas", porque não preenchem os requisitos para nenhum tipo de apoio", nota Daniela Guimarães.


Fechados em casa com fome


Menos mal quando pedem ajuda. Nos centros Porta Amiga, da AMI, 7026 pessoas pediram apoio social no primeiro semestre de 2010. Cerca de 75 por cento do total de 2009. A maioria entre os 21 e os 59 anos, ou seja, com idade para estar a trabalhar. Mas a coordenadora regional do Porto da AMI, Cristina Andrade, lamenta é pelos que não chegam a sair de casa. "Há muita gente fechada em casa, a passar fome. Com vergonha de sair porque nunca na vida pensaram ter que recorrer a uma instituição. Antes de cá chegarem, já venderam o recheio da casa, acumularam dívidas e só vêm quando as coisas estão em tribunal ou quando não têm para dar de comer aos filhos", relata. E insiste numa ideia que há-de repetir várias vezes: "Pedir ajuda é um direito, as pessoas têm que perder a vergonha de o fazer."


Não é algo que vá acontecer facilmente, na óptica do sociólogo Elísio Estanque. "Há aqui uma inconsistência de status. Do ponto de vista simbólico, as pessoas criaram uma imagem e um estatuto de classe média, mas agora vêem-se aflitas porque os orçamentos deixaram de cobrir os consumos a que estavam habituadas, e, portanto, deixaram de ter meios para responder em coerência com essa expectativa simbólica." "Escondem-se, porque ninguém gosta de ostentar a sua miséria, muito menos pessoas que tinham projectado para o exterior um estatuto diferente", especifica o autor do estudo Classes e Desigualdades Sociais em Portugal, publicado em 1997, em co-autoria com José Manuel Mendes. A situação actual só surpreende quem não andou atento aos números. Em 2003, o INE dizia que 20,4 por cento da população estava em risco de pobreza, ou seja, tinha rendimentos inferiores a 414 euros mensais. Em 2008, José Sócrates orgulhava-se de ter reduzido essa taxa para os 18,9 por cento. Se tivéssemos olhado para aqueles números antes das transferências sociais, percebíamos que a taxa de pobreza tinha aumentado na realidade de 41,3 por cento, em 2003, para os 41,5 em 2008. Agora, "o cenário está pior, com um peso muito maior de desempregados entre os pobres", reflecte Bruto da Costa, sem, contudo, arriscar números. Para percebermos como chegamos aqui temos que recuar alguns anos. "Por causa do crescimento económico, do desenvolvimento da administração pública e de um processo de concentração urbana muito brusco, entre outros factores, os trabalhadores começaram a acreditar que podiam pertencer à classe média e isso, aliado à facilidade de crédito, ajudou a que ficassem mais disponíveis para a compra de casas, assim como para os empréstimos para aquisição de carros, telecomunicações, equipamentos de longa duração. Tudo isso criou a ilusão de que a condição de classe média era sólida e estável. Ora, na verdade isso nunca aconteceu, porque as pessoas estavam era endividadas e o que esta crise está a provocar agora é um enorme defraudar dessa expectativa", acentua Estanque. Voltamos aos números: em Agosto, o incumprimento no crédito à habitação ascendia aos 1.957 milhões. E a casa é a última coisa que as pessoas deixam de pagar. "Enquanto tiverem um tecto não são sem-abrigo e conseguem esconder a miséria em que vivem", sublinha Cristina Andrade. No crédito ao consumo, a taxa de incumprimento é um pouco maior: sete por cento do total, ou seja, 1232 milhões de euros. Estanque olha para estes números e vê "uma classe média minimalista que está a atrofiar-se muito rapidamente". No mesmo sentido vai a análise do sociólogo Boaventura Sousa Santos. "A classe média é composta por aqueles que conseguem planear a vida, a ida dos filhos para a universidade, a compra do carro, as férias. Ora, as condições que tornaram possível o seu aparecimento estão a ser destruídas", constata, para concluir que, "se as democracias valem o que vale a classe média, então é evidente que a democracia portuguesa está a cometer suicídio".

Fonte: Público

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